sábado, 5 de janeiro de 2013

Diferença entre confissão religiosa e religião

“A confissão admite uma certa convicção coletiva, ao passo que a religião exprime uma relação subjetiva com fatores metafísicos, ou seja, extramundanos. A confissão compreende, sobretudo, um credo voltado para o mundo em geral, constituindo assim, uma questão intramundana. Já o sentido e a finalidade da religião consistem na relação do indivíduo com Deus (cristianismo, judaísmo, islamismo) ou no caminho da redenção que, sem a responsabilidade individual perante Deus, não passariam de moral e convenção.
As confissões, enquanto compromissos com a realidade mundana, evoluíram, consequentemente, para uma crescente codificação de suas visões, doutrinas e usos. E assim se exteriorizaram de tal maneira que o elemento religioso verdadeiro nelas – a relação viva e o confronto imediato com o ponto de referência extramundano delas – foi posto, na verdade num plano secundário. O ponto de vista confessional toma a doutrina tradicional como parâmetro para o valor e o significado da referência religiosa subjetiva. E mesmo quando isso não é tão frequente (como no caso do protestantismo), fala-se de pietismo, sectarismo, fanatismo, etc., quando alguém se diz guiado pela vontade de Deus. A confissão coincide com a Igreja oficial ou, pelo menos, se constitui como uma instituição pública, à qual pertencem não apenas os fiéis mas também um grande número de pessoas indiferentes à religião, que se integram por simples hábito. Aqui torna-se visível a diferença entre confissão e religião.
Pertencer a uma confissão, portanto, nem sempre implica uma questão de religiosidade mas, sobretudo, uma questão social que nada pode acrescentar à estruturação do indivíduo. Esta depende da relação do indivíduo com uma instância não mundana. Seu critério não é o credo e sim o fato psicológico segundo o qual a vida do indivíduo não pode ser determinada somente pelo eu e suas opiniões ou por fatores sociais, mas igualmente por uma autoridade transcendente. O que fundamenta a autonomia e a liberdade do indivíduo, antes de qualquer máxima ética ou confissão ortodoxa, é, única e exclusivamente, a consciência empírica, ou seja, a experiência unívoca de uma dinâmica de relacionamento pessoal entre o homem e uma instância extramundana que se apresenta como um contrapeso ao “mundo e sua razão (Presente e futuro. 4ª edição. Petrópolis: Vozes, 1999, pp. 9-10. Obras completas V. X/1, par. 507-509).

Tanto o Estado ditatorial quanto a religião confessional reforçam, de maneira especial, a ideia de comunidade. Este é o ideal básico do comunismo que, no entanto, devido à forma como é imposto ao povo, gera justamente o contrário do efeito desejado, ou seja, um Estado de desconfiança e separação. A Igreja, não menos que o Estado, também faz apelo ao ideal comunitário e quando sua fraqueza é visível como no caso do protestantismo, a penosa falta de coesão é compensada pela esperança e fé numa “vivência comunitária”. Como se pode perceber, a “comunidade” é um instrumento indispensável para a organização das massas, constituindo, no entanto, uma fava de dois gumes. Assim como a soma de dois zeros jamais resulta em um, o valor de uma comunidade corresponde à média espiritual e moral dos indivíduos nela compreendidos. Por isto, não se pode esperar da comunidade qualquer efeito que ultrapasse a sugerstao do meio, ou seja, uma modificação real e fundamental dos indivíduos, quer numa boa ou numa má direção. Esses efeitos só podem ser esperados do intercâmbio pessoal entre os homens e não dos batismos em massa comunistas ou cristãos que não conseguem atingir o homem em sua interioridade. Os acontecimentos contemporâneos nos mostram como a propaganda comunitária é superficial. O ideal comunitário desconsidera o homem singular que, em última instância, é quem responde às suas exigências. (Presente e futuro. 4ª edição. Petrópolis: Vozes, 1999, pp. 13-14. Obras completas V. X/1, par. 516).

“Embora as Igrejas no Ocidente gozem, em geral, de inteira liberdade, elas não estão menos cheias ou vazias do que no Leste. Contudo, eleas não exercem nenhuma influência significativa sobre o universo da política. A grande desvantagem da confissão, no sentido de uma instituição pública, é justamente o fato de servir ao mesmo tempo a dois senhores. De um lado, ela nasce da relação do homem com Deus e, de outro, tem obrigações para com o Estado, isto é, o mundo, o que nos faz pensar palavra – “Dai a César o que é de César, e a Deus, o que é de Deus” – e nas demais exortações do Novo Testamento.
Nos tempos antigos, e relativamente até bem pouco tempo, falava-se de uma “autoridade constituída por Deus”. Hoje, isso nos parece bastante antiquado. As Igrejas representam convicções tradicionais e coletivas que, para a grande maioria de seus adeptos, não mais se baseiam na própria experiência interior, e sim na fé irrefletida que rapidamente desaparece, tão logo se pense com mais profundidade sobre o seu sentido. O conteúdo da fé entra em conflito com o saber, evidenciando-se, desse modo, que a irracionalidade de uma nem sempre supera a razão da outra. Na realidade, a fé não é uma substituição suficiente da experiência interior e, quando esta inexiste, até mesmo uma fé forte pode, enquanto um donum gratiae (dom da graça), aparecer e desaparecer como por encanto. Designa-se a fé como a autêntica experiência religiosa mas não se leva em conta que ela é, mais propriamente, um fenômeno secundário que depende de um acontecimento primeiro, em que algo nos atinge e inspira a “pistis”, isto é, lealdade e confiança. Essa vivência tem um conteúdo específico que se interpreta no sentido da doutrina confessional. Quanto mais é interpretado nesse sentido, maior as possibilidades de conflito com o saber. A concepção confessional é, na verdade, muito antiga e dotada de um simbolismo impressionante e mitológico que, literalmente, leva a uma oposição radical com o saber. Contudo, se compreendermos, por exemplo, a ressurreição de Cristo de maneira simbólica e não literal, obteremos interpretações diversas que não entram em choque com o saber nem prejudicam o sentido da afirmação. A objeção de que uma compreensão simbólica poderia destruir a esperança dos cristãos na imortalidade, representada pela vinda de Cristo, é infundada, uma vez que a humanidade, bem antes do cristianismo, já acreditava numa vida depois da morte e, assim, não precisava do acontecimento pascal para garantir essa esperança. O perigo do exagero de literalidade na compreensão da mitologia, que pervade toda a doutrina da Igreja, pode culminar na sua recusa absoluta. E hoje ele é maior do que nunca. Já não seria hora de se entender de modo simbólico, definitivamente, os mitologemas cristãos, ao invés de negá-los?
[...] Quem foi sempre ensinado a se submeter incondicionalmente a uma fé coletiva e a abdicar do eterno direito de sua liberdade e do respectivo dever de sua responsabilidade individual, permanecerá na mesma atitude, com a mesma fé e falta de crítica, se enveredar para uma direção oposta ou substituir o idealismo confessado por outra convicção, mesmo considerada 'melhor'”.
(Presente e futuro. 4ª edição. Petrópolis: Vozes, 1999, pp. 16-18. Obras completas V. X/1, par. 520-521, 523).

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