As confissões, enquanto compromissos com
a realidade mundana, evoluíram, consequentemente, para uma crescente
codificação de suas visões, doutrinas e usos. E assim se exteriorizaram de tal
maneira que o elemento religioso verdadeiro nelas – a relação viva e o
confronto imediato com o ponto de referência extramundano delas – foi posto, na
verdade num plano secundário. O ponto de vista confessional toma a doutrina
tradicional como parâmetro para o valor e o significado da referência religiosa
subjetiva. E mesmo quando isso não é tão frequente (como no caso do protestantismo),
fala-se de pietismo, sectarismo, fanatismo, etc., quando alguém se diz guiado
pela vontade de Deus. A confissão coincide com a Igreja oficial ou, pelo menos,
se constitui como uma instituição pública, à qual pertencem não apenas os fiéis
mas também um grande número de pessoas indiferentes à religião, que se integram
por simples hábito. Aqui torna-se visível a diferença entre confissão e religião.
Pertencer a uma confissão, portanto, nem
sempre implica uma questão de religiosidade mas, sobretudo, uma questão social
que nada pode acrescentar à estruturação do indivíduo. Esta depende da relação do
indivíduo com uma instância não mundana. Seu critério não é o credo e sim o
fato psicológico segundo o qual a vida do indivíduo não pode ser determinada
somente pelo eu e suas opiniões ou por fatores sociais, mas igualmente por uma
autoridade transcendente. O que fundamenta a autonomia e a liberdade do
indivíduo, antes de qualquer máxima ética ou confissão ortodoxa, é, única e
exclusivamente, a consciência empírica, ou seja, a experiência unívoca de uma
dinâmica de relacionamento pessoal entre o homem e uma instância extramundana
que se apresenta como um contrapeso ao “mundo e sua razão (Presente e futuro.
4ª edição. Petrópolis: Vozes, 1999, pp. 9-10. Obras completas V. X/1, par. 507-509).
Tanto o Estado ditatorial quanto a religião
confessional reforçam, de maneira especial, a ideia de comunidade. Este é o
ideal básico do comunismo que, no entanto, devido à forma como é imposto ao
povo, gera justamente o contrário do efeito desejado, ou seja, um Estado de
desconfiança e separação. A Igreja, não menos que o Estado, também faz apelo ao
ideal comunitário e quando sua fraqueza é visível como no caso do
protestantismo, a penosa falta de coesão é compensada pela esperança e fé numa “vivência
comunitária”. Como se pode perceber, a “comunidade” é um instrumento indispensável
para a organização das massas, constituindo, no entanto, uma fava de dois
gumes. Assim como a soma de dois zeros jamais resulta em um, o valor de uma comunidade
corresponde à média espiritual e moral dos indivíduos nela compreendidos. Por isto,
não se pode esperar da comunidade qualquer efeito que ultrapasse a sugerstao do
meio, ou seja, uma modificação real e fundamental dos indivíduos, quer numa boa
ou numa má direção. Esses efeitos só podem ser esperados do intercâmbio pessoal
entre os homens e não dos batismos em massa comunistas ou cristãos que não conseguem
atingir o homem em sua interioridade. Os acontecimentos contemporâneos nos mostram
como a propaganda comunitária é superficial. O ideal comunitário desconsidera o
homem singular que, em última instância, é quem responde às suas exigências. (Presente
e futuro. 4ª edição. Petrópolis: Vozes, 1999, pp. 13-14. Obras completas V. X/1,
par. 516).
“Embora as Igrejas no Ocidente gozem, em
geral, de inteira liberdade, elas não estão menos cheias ou vazias do que no
Leste. Contudo, eleas não exercem nenhuma influência significativa sobre o
universo da política. A grande desvantagem da confissão, no sentido de uma
instituição pública, é justamente o fato de servir ao mesmo tempo a dois
senhores. De um lado, ela nasce da relação do homem com Deus e, de outro, tem
obrigações para com o Estado, isto é, o mundo, o que nos faz pensar palavra – “Dai
a César o que é de César, e a Deus, o que é de Deus” – e nas demais exortações
do Novo Testamento.
Nos tempos antigos, e relativamente até
bem pouco tempo, falava-se de uma “autoridade constituída por Deus”. Hoje, isso
nos parece bastante antiquado. As Igrejas representam convicções tradicionais e
coletivas que, para a grande maioria de seus adeptos, não mais se baseiam na própria
experiência interior, e sim na fé irrefletida que rapidamente desaparece, tão
logo se pense com mais profundidade sobre o seu sentido. O conteúdo da fé entra
em conflito com o saber, evidenciando-se, desse modo, que a irracionalidade de
uma nem sempre supera a razão da outra. Na realidade, a fé não é uma
substituição suficiente da experiência interior e, quando esta inexiste, até
mesmo uma fé forte pode, enquanto um donum gratiae (dom da graça), aparecer e
desaparecer como por encanto. Designa-se a fé como a autêntica experiência religiosa
mas não se leva em conta que ela é, mais propriamente, um fenômeno secundário
que depende de um acontecimento primeiro, em que algo nos atinge e inspira a “pistis”,
isto é, lealdade e confiança. Essa vivência tem um conteúdo específico que se
interpreta no sentido da doutrina confessional. Quanto mais é interpretado
nesse sentido, maior as possibilidades de conflito com o saber. A concepção confessional
é, na verdade, muito antiga e dotada de um simbolismo impressionante e mitológico
que, literalmente, leva a uma oposição radical com o saber. Contudo, se
compreendermos, por exemplo, a ressurreição de Cristo de maneira simbólica e não
literal, obteremos interpretações diversas que não entram em choque com o saber
nem prejudicam o sentido da afirmação. A objeção de que uma compreensão simbólica
poderia destruir a esperança dos cristãos na imortalidade, representada pela
vinda de Cristo, é infundada, uma vez que a humanidade, bem antes do
cristianismo, já acreditava numa vida depois da morte e, assim, não precisava
do acontecimento pascal para garantir essa esperança. O perigo do exagero de
literalidade na compreensão da mitologia, que pervade toda a doutrina da
Igreja, pode culminar na sua recusa absoluta. E hoje ele é maior do que nunca. Já
não seria hora de se entender de modo simbólico, definitivamente, os
mitologemas cristãos, ao invés de negá-los?
[...] Quem foi sempre ensinado a se submeter incondicionalmente a uma fé coletiva e a abdicar do eterno direito de sua liberdade e do respectivo dever de sua responsabilidade individual, permanecerá na mesma atitude, com a mesma fé e falta de crítica, se enveredar para uma direção oposta ou substituir o idealismo confessado por outra convicção, mesmo considerada 'melhor'”.
[...] Quem foi sempre ensinado a se submeter incondicionalmente a uma fé coletiva e a abdicar do eterno direito de sua liberdade e do respectivo dever de sua responsabilidade individual, permanecerá na mesma atitude, com a mesma fé e falta de crítica, se enveredar para uma direção oposta ou substituir o idealismo confessado por outra convicção, mesmo considerada 'melhor'”.
(Presente e futuro. 4ª edição. Petrópolis:
Vozes, 1999, pp. 16-18. Obras completas V. X/1, par. 520-521, 523).
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